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Pacotinhos de Noção

A noção devia ser como o açúcar e vir em pacotinhos, para todos tomarmos um pouco...

A noção devia ser como o açúcar e vir em pacotinhos, para todos tomarmos um pouco...

Pacotinhos de Noção

12
Ago21

A morte como auxiliar de memória


Pacotinhos de Noção

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A realidade com a qual vou iniciar este texto será de difícil compreensão para a malta mais nova, mas os da geração de 80 e anteriores perceberão perfeitamente.

Naquela altura existiam apenas 2 canais, o Canal 1 e o Canal 2, e mesmo assim havia a necessidade de mexermos numa antena para conseguir apanhar a frequência com alguma qualidade, e qualidade não era ser ou não em HD, era ter mais ou menos "chuva" no ecrã.

O Canal 1 emitia durante quase todo o dia. Iniciava pelas 8/9 horas e entrava madrugada dentro, por ser um grande maluco, terminado à uma ou duas da manhã.

O Canal 2 iniciava a sua emissão depois do almoço e terminava pela meia-noite.

Existindo tão pouca oferta a verdade é que as coisas acabavam por ser mais organizadas. Havia tempo para noticiários (de tempo normal), concursos, desenhos animados, programas culturais e outros de entretenimento, e existiam também as novelas.

As novelas eram o que mais facilmente atingiam picos de audiência, audiências que eram afinal de pouca importância, pois não havia concorrência. Não existindo produção nacional, e quando existia era de parca qualidade, as novelas que sorvíamos eram as brasileiras da Globo, e devo dizer que ainda bem que o fazíamos, pois eram e ainda hoje são, produções que primam pela qualidade, pela boa direcção de actores e por investimentos que por muito que tentemos não vamos nunca conseguir igualar.

Com a recente produção nacional massiva de novelas a verdade é que as da Globo passaram a ser relegadas para segundo plano, e quando actores que nos acompanharam tantas e tantas vezes desaparecem, acabamos por nem ficar a saber.

Ontem morreu Paulo José, um actor que vivia mais por detrás das câmaras, por ser também director e realizador, e que teve na personagem do "prestamista" Gladstone em Tieta do Agreste, talvez a personagem que em Portugal mais o deu a conhecer. Durante o dia de hoje morreu também um ícone das novelas, cinema e teatro no Brasil, e alguém que durante muitos anos também fomos acompanhando, quer nas novelas, quer também na sua vida pessoal, que se destacava por ter um filho que era a sua fotocópia e um casamento que faria em 2022, 60 anos.

Tarcísio Meira, que tinha uma extensa carreira, ficou para mim conhecido pelos papéis na novela Roda de Fogo, em que interpretava a personagem principal, Renato Villar, que viria a morrer no último episódio vítima de um tumor cerebral, deitado no colo da sua amada numa praia paradisíaca, enquanto apreciava um copo de vinho.

Mais recentemente havia sido visto em duas novelas, em personagens um pouco mais cómicas. Foi João Medeiros, na novela "Um Anjo caiu do Céu" e depois o vampiro Boris, em "O Beijo do Vampiro.

Mas diminuir o actor a estes 3 exemplos é até ofensivo. Participou em mais de 70 novelas e em mais de 20 filmes. Dono de uma presença forte, e de uma estatura imponente dava ideia de que nada o derrubaria... O Covid derrubou.

Estava vacinado mas não foi a vacina que o matou, foi a falta da vacina nos outros que o fez.

Morreu com 85 anos, teve uma vida muito preenchida, provavelmente já pouco mais iria fazer. As palavras que escrevo não são para celebrar a sua vida nem para lamentar a sua morte, são para mostrar que a memória do público é efémera e que só amam o artista e o actor, caso ele apareça.

Que se saiba Tarcísio Meira não morreu na miséria. Uma vida de trabalho no meio artístico brasileiro rende bem mais do que aqui em Portugal, mas a verdade é que o actor estava esquecido do público português e podemos alegar que isto acontece porque ele nem era de cá. Mas e os tantos de cá que também ficam esquecidos?

Falo de um Eládio Clímaco, de um Luís Pereira de Sousa ou de muitos outros tantos que a notícia próxima que teremos, será a da constatação da sua morte.

Aconteceu com Maria José Valério, e acontecerá com Eunice Munoz e Ruy de Carvalho, caso eles deixem que se esqueçam deles.

A classe artística mostrou já a sua fragilidade com os confinamentos e os encerramentos recentes das salas de espectáculos, mas na verdade a maior fragilidade que os poderá afectar é a falta de lembrança e de reconhecimento daqueles a quem eles já tanto deram.

Orlando Costa, Rui Mendes, Luís Vicente, Guilherme Filipe... Estes nomes foram já uma constante no dia-a-dia dos portugueses, mas grande parte de nós terá que procurar no Google para agora saberem quem são.

O mundo evolui, mas os artistas também e algo que os ajuda a melhorar é também a idade. Mas aquilo que reparo é que em Portugal cada vez mais se faz televisão de nojo, em que o velho não pode aparecer. Entre colocar um Carlos Ribeiro a apresentar uma daquelas fantochadas de fim-de-semana, conseguindo assim até dar alguma dinâmica à coisa, preferem colocar um Rúben Rua, cujo talento está ainda por demonstrar e que mais não é do que o aproveitamento do colocar o menino bonito da directora a apresentar qualquer coisinha.

A memória atraiçoa-me nalgumas situações mas nestas não, e lembro-me de nomes que estão hoje afastados dos ecrãs, e outros que até estão nos ecrãs mas que mereceriam outro destaque, como o Júlio Isidro, por exemplo, e que colocariam as programações muitos níveis acima.

Falo de Maria Elisa Domingues, Carlos Cruz, Eládio Clímaco, Vera Roquete, António Sala, Fernanda Freitas, Joaquim Letria, Carlos Ribeiro... São nomes que não acabam mais, uns mais jovens que outros mas todos cheios de qualidade e que não são aproveitados porque são mais velhos, são datados e deitados fora como se de iogurtes fora de prazo se tratassem. Temos a televisão que merecemos, mas não me lixem, temos também a que queremos, e infelizmente queremos com uma qualidade muito mas mesmo muito fraquinha.